sábado, 5 de abril de 2014

ANAXIMANDRO DE MILETO


Discípulo de Tales e o primeiro que teve a coragem de escrever as suas idéias em prosa, Anaximandro (610-547 a.C.) vai afirmar, considerando que a água, com suas propriedades determinadas, veio a ser e, como tal, está destinada ao declínio, que o úmido não pode ser a origem das coisas, do contrário, como explicar aconstante existência do devir, o eterno vir-a-ser, o contínuo fluxo de coisas que surgem e, logo em seguida, decaem? A origem de todas as coisas, o ser primordial, o fundo inesgotável do qual tudo procede e ao qual tudo regressa, portanto, não pode ser, tal como as próprias coisas, seja ela a água ou mesmo o ar, como queria Anaxímenes, mortal, transitória, com propriedades determinadas, mas, sim, imortal, eterna e indeterminada: o apeíron

Deixada de ser um desdobramento ou dissimulação de uma única qualidade existente - no caso, da água - de que maneira, então, o filósofo explicou a multiplicidade? Anaximandro, tortalecendo e multiplicando as observações do mestre, considerou que o próprio úmido se formava a partir do calor e do frio enquanto qualidades ainda mais originais, qualidades essas que não seriam, em si, princípios, mas, sim, próprias a um princípio não-físico, eterno e imortal, e que, ao se separarem, davam início ao vir-a-ser. A saída das coisas do apeironé, assim, uma separação, a partir do todo originalmente unido, dos contrários que lutam neste mundo, como se refere a grande e única máxima de Anaximandro que nos foi transmitida diretamente por ele: 


Onde estiver a origem do que é aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a sentença do tempo. 



Não é que a existência das coisas como tais, a individualização, seria umpecado original, uma sublevação contra o princípio originário eterno, pela qual as criaturas teriam de padecer uma pena, como já se escreveu, desde Nietzsche até Erwin Rhode. Faltava às edições usadas por esses escritores uma palavra (άλλήλοις) que restaurou o texto correto e fez ver que se tratava não de culpa das coisas, idéia estranha aos gregos, mas da compensação da pleonexia - desejo de possuir além do que tem - das coisas. Expliquemos:



Anaximandro figura as coisas como a contenda dos homens num tribunal. Tal como um juiz da cidade jônica retira o excesso tirado por um dos contendores do outro e o dá ao que ficou com pouco, há também uma compensação eterna que se realiza no mundo inteiro, na totalidade dos seres. O que ele afirma, portanto, é que há uma justiça imanente ao próprio acontecer, no qual se realiza para cada caso a compensação das desigualdades. A ordem imanente de justiça submete as coisas da natureza, com todas as suas forças e oposições, e determina, então, sua ascenção e sua decadência. Não é bem uma lei da natureza no sentido moderno, mas uma norma universal através da qual, na medida em que o acontecer natural é concebido como governado pela justiça (diké) eterna, o mundo se revela a Anaximandro como um cosmos, isto é, como uma comunidade jurídica das coisas - descoberta que não se podia fazer senão no fundo da alma humana, por uma faculdade intuitiva, afinal, nada se teria podido fazer com telescópios, observatórios ou qualquer outro tipo de investigação empírica.



Assim, não é que a separação dos contrários constitui a injustiça original da qual surge, então, a multiplicidade, cuja existência seria, portanto, um fenômeno moral, mas que o acontecimento é regido por uma justiça eterna que submete todas as forças e seus contrários. A pluralidade das coisas surgidas não é descrita e explicada por Anaximandro, como se pensou, como uma soma de injustiças a serem expiadas com a morte, o que faz o vir-a-ser ser visto como uma verdadeira maldição e a existência como uma tragédia, mas como uma determinação da justiça imanente ao mundo, o que faz o vir-a-ser ser visto como uma bênção e a existência como uma graça.



A idéia filosófica do cosmos representou uma ruptura com as representações religiosas habituais e também a aparição de uma nova concepção da divindade do ser, no meio do horror da fugacidade e da destruição, que tanto impressionou as novas gerações. A justiça do mundo em Anaximandro recorda que o conceito grego de causa, fundamental para o novo pensamento, coincidia originalmente com o conceito de culpa e foi transferido da imputação jurídica à causalidade física. Dado que Anaximandro se serviu da ordem da existência humana para tirar conclusões a propósito da physis, ainda que nos pensadores jônicos não se encontre uma transposição expressa da ordenação do mundo e da vida do homem para o ser das coisas não humanas, a sua concepção do governo da Diké sobre os acontecimentos é o começo do processo de projeção da polis no universo, contendo em germe, desde o início, a idéia de uma futura e nova harmonia entre o ser eterno e o mundo da vida humana com os seus valores.



apeíron, bem como as qualidades não-físicas, pode até não ser possível, mas, certamente, foi possível, ao que parece, a existência de um modo de vida não apenas contemplativo, como também livre das opiniões correntes.

Fontes:
PRÉ-SOCRÁTICOS, Coleção Os Pensadores (NOVA CULTURAL, 1996).
NIETZSCHEFriedrich. A Filosofia na Era Trágica dos Gregos (HEDRA, 2008).
- JAEGER, Werner. Paidéia. (Martins Fontes, 2010)

domingo, 30 de março de 2014

Marx e o materialismo histórico.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume abr., Série 04/04, 2011, p.01-08.


Enquanto o positivismo representou uma preocupação com a manutenção da ordem capitalista, o marxismo procurou realizar uma critica a este tipo de sociedade, colocando em evidência as contradições.
O representante maior desta critica foi Karl Marx(1818-1883), auxiliado por Friedrich Engels (1820-1903).
Ambos demonstraram grande preocupação em provar que o capitalismo seria um acontecimento transitório, diante do aparecimento iminente de uma classe revolucionaria no seio da sociedade capitalista.


As idéias de Marx.
Alemão, quando era jovem, Marx testemunhou o crescimento das fábricas e da desigualdade, foi quando se envolveu em conflitos políticos com o governo de seu país.
O que, depois de breve período de estudo na França, fez com que se estabelecesse na Inglaterra como exilado político.

Neste ultimo país pode observar de pertoo nascente desenvolvimento industrial do capitalismo no século XIX.


Isto fez com que Marx passasse a enxergar o capitalismo como um sistema de produção presente em sistemas econômicos anteriores, chegando a afirmar que as mudanças sociais estariam ligadas ao desenvolvimento da economia.
Neste sentido, os detentores de capital, chamados de capitalistas, proprietários dosmeios de produção, formariam a classe dominante, utilizando a ideologia para manipular os proletários.
O termo proletário é usado por Marx para designar os despossuídos que só tem como capital sua mão de obra, vendida aos capitalistas em troca de um salário.
Na realidade, a palavra não era nova, sua origem remonta a Roma antiga, significando, a partir do latim, aquele que só tem como propriedade a sua prole, já que os filhos e a esposa podiam servir de garantia para contrair empréstimos.
No contexto romano, ao não saldar um divida, o proletário tinha a prole escravizada e, em casos extremos, o próprio devedor se tornava escravo.
Em todo caso, no século XIX, para Marx, a ideologia, utilizada pelos capitalistas para controlar as massas, poderia ser definida como idéias que influenciam comportamentos.
Estas idéias estariam presentes nas instituições, montadas de forma a ocultar as relações antagônicas entre capitalistas e proletários, sempre favorecendo as elites.
Em escolas, por exemplo, a ideologia das classes dominantes estaria fortemente presente, não só através do próprio sistema educacional, como também, inclusive, nos textos dos livros didáticos.
Assim, para romper com este domínio, o conhecimento dos papéis assumidos pelo conjunto das instituições seria fundamental.
Compreender a sociedade capitalista, incluindo o estudo do sistema educacional, seria essencial para construir uma sociedade mais justa.
Pensando na questão, em sua principal obra, O capital, Marx desenvolveu a idéia de que existe uma relação de exploração entre classes, resultando em conflitos despertados pela divisão injusta da “mais valia”.
A “mais valia” seria a diferença entre o custo de contratação de mão de obra e recursos necessários para produção, contraposto ao rendimento do resultado final.
Em outras palavras, simplificando, a “mais valia” representa o valor agregado ou o lucro, o que ele chamou de valor excedente ou maior, concentrado inteiramente nas mãos do capitalista, de onde veio justamente o dito termo.
Daí a famosa expressão: “a culpa é da mais valia”.
Um slogan muito utilizado por marxistas até hoje para se referir as desigualdades sociais registradas dentro do âmbito do sistema capitalista.
Entretanto, as idéias de Marx não são originais, remetem a vários outros pensadores, pegando conceitos emprestados.


Os pensadores que influenciaram Marx.
Filho de um jurista prussiano e mãe holandesa, de família judaica forçada à conversão ao luteranismo, Marx estudou direito na Universidade de Berlim, onde Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi professor e reitor.
As concepções filosóficas de Hegel influenciaram fortemente o pensamento marxista, fazendo com que adquirisse o conceito de historicidade.
Para Hegel o mundo está em constante mudança, sendo condicionado por dois fatores que alteram o comportamento humano: coerção e liberdade.
O homem só conseguiria adquirir sua liberdade plena quando percebe que é um agente da história, que construi seu próprio destino, o que aconteceria por meio de uma revolução, sendo mergulhada em violência e coerção.
Como exemplo, ele cita a Revolução Francesa, um momento de libertação humana que foi conseguido através do terror, onde os opositores da cidadania foram exterminados pelos grupos que conseguiram enxergar seu papel na história.
Portanto, os movimentos históricos que geram rupturas acontecem de forma dialética.
Um outro conceito do qual Marx se apropriou, adotado como ferramenta junto com o materialismo histórico.
Este último também não foi desenvolvido por Marx, mas sim por Ludwig Feuerbach, embora não fosse assim nomeado pelo pensador.


Feuerbach se opunha as teorias de Hegel, discordando dele no que diz respeito a historicidade ser manipulada pelo espirito humano, pelas idéias; ao inverso, achava que as questões materiais é que determinam o pensamento.

Portanto, Feuerbach era um filosofo materialista que considerava a existência material como determinante dos comportamentos sociais.
Neste sentido, achava que a materialidade condicionava as idéias, usadas para manipular as pessoas, alienando, reduzindo a capacidade dos individuos de agirem por si só, tornando-os marionetes nas mãos dos grupos que compartilham o poder.
Afirmava que a religião consistia em uma projeção dos desejos humanos, não era concreta, sendo uma forma de alienação.
Conceitos que Marx uniu com o socialismo utópico francês, uma corrente que afirmava que o desenvolvimento de preceitos morais e ideológicos conduziriam a humanidade à formação de uma sociedade mais justa, com a partilha fraterna dos bens materiais.
A idéia estava baseada no pressuposto de que a moral cristã burguesa exigia o bem estar do próximo, o que levaria as civilizações naturalmente até o socialismo.
Marx considerou ingênuos os socialistas utópicos franceses, pois, tal como Hegel, pensava que seria necessário uma revolução para implantar o socialismo, mas na realidade acabou absorvendo várias de suas concepções.
Nesta grande salada, onde o marximo uniu dois filosofos opostos como Hegel e Feuerbach com idéias dos socialistas utópicos franceses, foram somados ainda componentes desenvolvidos por economistas ingleses, como Adam Smith e David Ricardo.
Conceitos muito discutidos entre os intelectuais da época, nas rodas de conversa freqüentadas por Marx, passaram a compor o centro do marxismo.
Dentre os quais a idéia de divisão social do trabalho, presente entre positivistas e funcionalistas, além da acumulação primitiva de capital, explicação segundo a qual a capitalização não é possivel pura e simplesmente pela divisão racional do trabalho.
O enriquecimento só aconteceria através da expropriação da produção coletiva.
Um exemplo concreto é o inicio dos cercamentos que deram origem a propriedade privada nos primórdios do aparecimento das primeiras civilizações.
No inicio da humanidade, as terras não tinham dono, tudo pertencia a coletividade, ao clã, familia ou grupo; porém, diante da ganância e da carência de recursos, os mais forte teriam começado a se apropriar do que era coletivo, cercando as terras para delas tomar posse.
Em outras palavras, toda acumulação primitiva de capital só é possivel através da criação de desigualdades que tendem a se tornar cada vez maiores.


O marxismo.
O que se convencionou chamar de marxismo é apenas uma colagem de vários conceitos vigentes na época de Marx, contudo, a originalidade reside justamente na junção de idéias antagônicas sobre o tripé dialética, materialismo histórico e socialismo cientifico.
Para Marx, o pensamento dialético conduziria a sociedade a revolução e, esta, ao socialismo.
Enquanto instrumental, a dialética, também chamada de materialismo dialético, pode ser caracterizada como um método que consiste em efetivar uma espécie de diálogo consigo mesmo, compondo um raciocinio que, explorando as contradições, envolve tese, antítese e síntese.
Além da dialética, outro componente essencial que conduziria a revolução seria o materialismo histórico, uma tendência que parte da base econômica para explicar outros níveis de realidade, como religião arte ou política.
Para o materialismo histórico, os fatores econômicos, as condições materiais, explicam todos os fenômenos históricos e sociais, inclusive os conflitos de classes, tidos como origem de diversos problemas sociais.
No caso de uma sociedade, por exemplo, restrita em suas fronteiras por povos mais fortes e pelo mar, com território pouco vocacionado a agricultura, a luz do materialismo histórico, teríamos o desenvolvimento de uma civilização de pescadores e, posteriormente, de navegantes e comerciantes.
Juntando estes dois elementos, dialética e materialismo histórico, Marx pensou no socialismo cientifico, uma tendência política, econômica e social definida como estágio superior de desenvolvimento civilizacional.
Segundo Marx e Engels, o capitalismo seria apenas uma etapa rumo ao socialismo, uma vez que as contradições entre burguesia e proletariado iriam amadurecer dentro deste sistema.

As contradições e condições materiais conduziriam a humanidade a um novo sistema econômico, compondo uma sociedade igualitária, com a abolição da propriedade privada e das classes sociais.

Exatamente por esta razão, os opositores do socialismo cientifico, também o chamam de utópico, tale como eram nomeados os defensores da tendência francesa do século XIX.

O socialismo cientifico seria utópico porque uma sociedade totalmente igualitária é inviável, devido a uma série de fatores, inclusive a própria natureza humana.
O termo utópico faz uma referência a obra de Thomás More, Utópia, uma ficção que narra a vida em uma sociedade perfeita, localizada em uma ilha, fazendo com que a palavra se tornasse sinônimo de perfeição impossivel de ser colocada em prática.


Concluindo.
O socialismo cientifico ou utópico, originado a partir do pensamento marxista, desdobrou-se em inumeras tendências, tal como o leninismo, o stalinismo, o trotsknismo, o castrismo, etc.
Em geral, onde o socialismo real foi implantado, um regime igualitário nunca foi concretizado, o governo compartilhado se degenerou em ditaduras repressivas e sangrentas.
O próprio Marx se equivocou ao considerar que o primeiro país onde o socialismo surgiria espontaneamente, com as contradições conduzindo a um revolução do proletariado, seria a Inglaterra.
Isto porque, como representante maior do sistema capitalista, com uma classe proletária, crescente por conta da industrialização, seria entre os ingleses que as contradições se tornariam gritantes a ponto de provocar uma revolução.
Ao inverso, a revolução começou na Rússia, país eminentemente agrário, liderada não por proletários, mas por intelectuais de classe média que pensavam estar lutando por todos, quando na verdade apenas substituiram os monarquistas na liderança da nação.
Entretanto, foram condições materiais que conduziram a Rússia a revolução bolchevic, tal como o contexto da primeira guerra mundial.
Portanto, o materialismo histórico mostrou sua utilidade, é pena que o próprio Marx não tenha conseguido utilizá-lo adequadamente como instrumental.


Para saber mais sobre o assunto.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ENGELS, Friedrich. A origem da familia e da propriedade privada. São Paulo: Bertrand, 2006.
GIDDENS, Anthony. Capitalismo e moderna teoria social. Lisboa: Editora Presença, 1994.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
MAGEE, Bryan. História da filosofia. São Paulo: Loyola, 2000.
MARTINS, Carlos B. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Saraiva, 2010.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977.
MORE, Thomás. Utópia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em História Social pela FFLCH/USP.

sábado, 29 de março de 2014

A coruja – símbolo da filosofia








A coruja da filosofia é a Coruja de Minerva. Minerva é uma deusa romana. Seu equivalente grego é Athena. 

A deusa Athena é filha predileta do deus dos deuses, Zeus, e da deusa Metis, cujo nome significa “conselheira”, e que indica a posse de uma sabedoria prática. Athena não nasceu de parto normal. Zeus engoliu a esposa, Metis, para se safar do filho que, pensava ele, poderia destroná-lo, aliás como ele próprio fez com seu pai, Cronos. O nascimento de Athena se dá de um modo especial: após uma grande dor de cabeça, Zeus teve sua fronte aberta por um de seus filhos, e daí espirrou Athena, já forte e grande.
Athena seria a protetora natural de Athenas – uma vez que estava ligada à idéia decuidado com as habilidades manuais, com as artes em geral, com a guerra enquanto capacidade de proteção e, enfim, com a sabedoria, ou seja, tudo que deveria comandar uma cidade.
Todavia, foi desafiada por Poseidon, que também desejava ser o protetor da cidade de Atenas. Os deuses em reunião decretaram que ficaria com a cidade aquele que produzisse algo de mais útil aos mortais. Poseidon fez o cavalo, Athena fez a oliva. A vitória foi concedida a Athena. A disputa clássica na vida de Athena, no entanto, foi contra uma mortal – Arachne, talvez uma princesa, mas que aparece na mitologia como um tipo de doméstica. Arachne tecia muito bem, maravilhosamente, a ponto de dizerem que a própria deusa das habilidades, Athena, a havia ensinado. Mas Arachne negava tal fato e retrucava que poderia produzir uma rede muito superior a qualquer coisa que Athena fizesse. E assim desafiou a deusa.
Athena transformou-se em uma velha e foi procurar Arachne, para aconselhá-la a não desafiar um deus. Mas Arachne ficou furiosa, e manteve seu desafio. E então veio o confronto. Ambas teceram rapidamente, mostrando uma habilidade incrível, e a própria disputa se fez de modo tão fantástico que parecia uma homenagem ao trabalho. No produto de Athena, as figuras tecidas mostravam os deuses, imponentes, mas desgostosos com a presunção dos mortais. No produto de Arachne, as figuras exemplificavam erros dos deuses – tudo em forma de deboche. O resultado foi que Athena não suportou o insulto, e se insurgiu contra Arachne. Quando foi para colocar fim na vida de Arachne sentiu piedade (piedade grega, não cristã, é claro) e a poupou, deixando-a viver como um estranho animal – a aranha.
O mito pode ser lido como tendo o objetivo mostrar a criação da aranha. Mas, como sempre, fornece mais leituras: mostra Athena como compreensiva aos erros humanos: um deus que não fosse Athena não se daria ao luxo de virar uma mortal para, sutilmente, persuadir um outro mortal de não insultá-lo. Assim, com tal característica, Athena era de fato a condutora da cidade de Athenas, que recebeu tal nome por causa dela. Inspirados em Athena, os cidadãos gregos daquela cidade aprenderiam a se comportar diante das leis urbanas, deveriam tomar as melhores decisões, evitar conflitos e se proteger, ordenadamente – inclusive através da guerra – contra inimigos externos.
A imagem de Athena povoou as mentes de alguns filósofos. Platão, ao falar de Athena, a tomou como protetora dos artesãos, ressaltando o caráter da deusa enquanto não somente uma guerreira e conselheira, mas efetivamente como aquela que, desde o momento que deu a oliveira aos mortais, estava preocupada em honrar a sabedoria prática, a habilidade de usar as mãos em articulação com o cérebro. Talvez Marx, ao falar que o pior engenheiro é ainda melhor que a melhor das aranhas, estivesse pensando, de fato, em Arachne. Mas certamente é com Hegel que Athena se imortalizou para nós modernos, finalmente, na sua ligação com a filosofia. É claro que predominou seu nome romano, Minerva. E mais que a própria deusa, a coruja ficou no centro da história.
A frase de Hegel, que diz que a Coruja de Minerva levanta vôo somente ao entardecer, alude ao papel da filosofia. Ou seja, a filosofia só pode dizer algo sobre o mundo, através da linguagem da razão, após os acontecimentos que haviam de acontecer realmente acontecerem. Antes que “prever para prover”, que é um lema de Comte e, portanto, do espírito cientificista, Hegel preferia dar crédito a uma postura filosófica que se via distinta da postura da ciência: a voz da razão explica – racionaliza – a história. Ou seja, depois da história, ela mostra que esta não foi em vão.
Quando dizemos, com William James, que cada filosofia é o temperamento do filósofo que a criou, podemos então caminhar mais um pouco e dizer que Marx e Hegel aparecem como os que melhor encarnaram a própria psicologia de Athena para tecerem suas filosofias. Marx e Hegel, cada um com sua própria psicologia, seus temperamentos, captaram o espírito de Athena para fazerem disso espelhos para suas filosofias. Pois, afinal, Athena detinha com suas duas facetas o espírito de suas filosofias: de um lado, Athena era a protetora de uma democracia de artesãos, de outro, a racionalizadora das decisões urbanas. Portanto, Marx e Hegel, em essência!Mas sabemos que, de fato, o símbolo da filosofia ficou sendo a coruja, não Athena. Poderia ser outro animal, e não a coruja, o mascote de Athena? E como mascote da filosofia, o que indica?
A coruja não é bela. Platão era tido como belo, mas Sócrates não. A coruja não é adepta de uma visão unidirecional, ela gira a cabeça quase que completamente, vendo todos os lados. Platão era adepto de uma visão unificadora, mas Sócrates eraquase um perspectivista. Platão ensinava em uma escola que, muitas vezes, foi oficial. Mas Sócrates ensinava nas ruas. Foi acusado e condenado por seduzir os jovens, por roubá-los da Cidade, da PólisA coruja, por sua vez, é a ave de rapinapar excellence, e apanha os descuidados – na noite. Os leva da cidade, para seu ninho. E então, dá para entender, agora, o que é que coruja e filosofia fazem juntas?


(Fonte: blog do Paulo Ghiraldelli)

terça-feira, 25 de março de 2014

O utilitarismo de Bentham: a ética dos resultados

O utilitarismo é uma doutrina que se originou na Inglaterra, tendo como principais autoresJeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Aliás, Bentham foi o mestre de Stuart Mill, que lançou as bases da democracia liberal. Também conhecido como moralismo britânico ou pensamento radical, liberalismo clássico ou positivismo inglês, o utilitarismo influencia o pensamento ético-filosófico, econômico e jurídico por pelo menos dois séculos. De acordo com Luis Alberto Peluso (p. 202), foi a primeira escola filosófica, em sentido estrito, que se originou no mundo de fala inglesa. Essa doutrina é muito atual e seus argumentos são utilizados frequentemente nos processos decisórios, seja no âmbito particular, militar ou político, justamente por se enfocar mais nas consequências. Trata-se de uma teoria ética consequencialista, na qual se definem anteriormente os bens a serem atingidos ou protegidos. E o Direito seria o meio de consegui-los. Uma curiosidade. Essa doutrina também inspirou, quiçá, programas contemporâneos de entretenimento, na linha dos reality shows, como o famigerado “Big Brother”. Qualquer semelhança com o Panopticon de Bentham poderá não ser mera semelhança.

Bentham: revolucionário e conservador

Bentham nasceu em Londres, um dos seis filhos de um advogado de renome e corretor de imóveis. Quando tinha 12 anos, entrou no Queen’s College, em Oxford, sagrando-se bacharel em Humanidades em 1763. Estudou numa das escolas de Direito de Londres (Inn’s of Court), a Lincoln’s Inn, mas voltou a Oxford, para estudar com Sir William Blackstone, a quem criticou severamente pela sua teoria dos Direitos Naturais, a qual, para Bentham, era irracional. Seguiu a tradição empirista de John Locke e de David Hume. Não quis advogar, pois decepcionou-se com a maneira como era conduzida a prática da profissão naquela época.
Em 1766, tornou-se mestre em Humanidades e retornou para Londres. Era um reformador político e inventor. Em suas aulas, Peluso atribui a invenção de um protótipo incipiente de geladeira a Bentham. Apesar dos avanços “radicais”, Bentham também era um conservador. Tinha preocupação em preservar a sociedade inglesa do furor que ocorreu na França e nos Estados Unidos, a revolução.
Escreveu vários livros como “Fragmento sobre o governo” e “Introdução aos princípios da moral e da legislação”. Bentham criou a palavra “deontologia”, ou seja, o conjunto de princípios morais e legais aplicados às atividades profissionais. A expressão Direito Internacional também é uma criação atribuída a Bentham, antes utilizava-se o termo “Direito das Gentes”.
Tornou-se uma pessoa influente e seu grupo ajudou a fundar a Universidade de Londres. Morreu aos 84 anos, em 1832. Seu cadáver foi embalsamado e disposto na Universidade de Londres (ver foto). Toda vez que o colegiado se agrega, o cadáver de Bentham participa da reunião.
Para Wayne Morrison (p. 222), o utilitarismo de Bentham foi uma tentativa de se criar uma ciência objetiva da sociedade e da política. Pensava-se em se livrar do subjetivismo, tal como da influência religiosa e dos acidentes históricos. Interesse e razão se combinavam e o ponto arquimediano (de equilíbrio) estaria na própria natureza: o princípio da utilidade.
O francês Helvetius escreveu que o homem é governado pelo prazer e pela dor. Essa foi a base do livro “Introdução aos princípios da moral e da legislação”. Escreveu Bentham: “A natureza colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Só a eles compete indicar o que devemos fazer, assim como determinar o que faremos. A seu trono estão atrelados, por um lado, o critério que diferencia o certo do errado, e, por outro, a cadeia das causas e dos efeitos.”
O ser humano busca o prazer e foge da dor. E este seria o embasamento para uma filosofia jurídica crítica e também como modelo para o legislador hábil controlar e dirigir o comportamento social. “Nesse sentido, ele defendeu a idéia de que o princípio que rege tanto as ações individuais quanto as sociais é: ‘a busca da felicidade para o maior número de pessoas’. Esse princípio da utilidade daria consistência a uma Ética capaz de produzir o melhor dos indivíduos e a melhor das coletividades. Portanto, a busca do prazer pela fuga da dor é o princípio motivador da ação humana, tanto individual quanto coletiva. Disso decorria uma Ética para indivíduos racionais, capazes de buscar seus próprios interesses, amantes da vida. Enfim, uma Ética com todos os ingredientes da visão Iluminista do mundo que teria caracterizado os séculos XVII e XVIII”, assinala Peluso (p. 13-14).
Peluso descreve os princípios (P) e as regras (R) morais do utilitarismo de Bentham (p. 24-25):

“I – Princípio da Utilidade:
P1. Todo ser humano busca sempre maior prazer possível.
R1. Busque sempre o maior prazer e fuja da dor.
II – Princípio da Identidade de Interesses:
P2. O fim da ação humana é a maior felicidade de todos aqueles cujos interesses estão em jogo. Obrigação e interesse estão ligados por princípio.
R2. Aja de forma que sua ação possa ser modelo para os outros.
III – Princípio da Economia dos Prazeres:
P3. A utilidade das coisas é mensurável e a descoberta da ação apropriada para cada situação é uma questão de aritimética moral.
R3. Faça o cálculo dos prazeres e das dores e defina o bem em termos genéricos.
IV – Princípio das Variáveis Concorrentes:
P4. O cálculo moral depende da identificação do valor aritmético de sete variáveis: Intensidade/Duração/Certeza/Proximidade/Fecundidade/Pureza/Extensão.
R4. Procure maximizar a objetividade e a exatidão de suas avaliações morais.
V – Princípio da Comiseração:
P5. O sofrimento é sempre um mal. Ele só e admissível para evitar um sofrimento maior.
R5. Alivie o sofrimento alheio.
VI – Princípio da Assimetria:
P6. Prazer e dor possuem valores assimétricos, pois a eliminação da dor sempre agrega prazer.
R6. Escolha sempre a ação que resulta na maior quantidade de prazer, agregando o prazer da eliminação de sofrimento.”


O papel do Direito
Para Bentham, ética, moral e Direito eram a mesma coisa. Pretendia iniciar uma nova ciência do Direito, tal como reformar a sociedade, tornando-a moderna e disciplinada. “Contrariamente aos juristas mais destacados desse período, Bentham defendeu a idéia de que as leis são revogáveis e aperfeiçoáveis”, salienta Peluso (p. 19).
Porém, a medida também era conservadora: “Bentham sempre temeu as revoluções que, em seu tempo, viu varrer o continente europeu e as Américas. A ordem e a segurança eram preocupações centrais, assim como era crucial poder contar com essa previsibilidade da interação e da certeza do resultado. O comércio exige um sistema jurídico que faça cumprir as promessas e assegure as expectativas legítimas”, narra Morrison (p. 225). Também frisa Peluso (p. 209): “Educação e disciplina social são as duas pilastras que garantem a sociedade e a civilização. A sociedade é um sistema de recompensas e punições, e a tarefa do governo consiste em garantir a estrutura para a implementação das punições e as condições para que os indivíduos possam desfrutar das recompensas que se seguem de seus próprios esforços.”
O Direito, então – para Bentham -, assume importância de destaque. O legislativo só deve elaborar e aprovar leis segundo o princípio da utilidade. As leis devem ser produzidas para aumentar a felicidade do maior número de pessoas. As leis poderiam ser principais (se dirigidas aos cidadãos), ou subsidiárias (para as autoridades fazerem cumprir as primeiras). “Contudo, o utilitarismo não se esgota nessa Ética do sucesso. Ele também transforma em motivo ético o fracasso. Pois que, em seu projeto, se o princípio da ação humana é a busca do prazer e a eliminação da dor, ele estabelece um vínculo causal entre o prazer do agente individual e o sofrimento que possa, de alguma forma, estar associado à sua ação. Assim, o agente moral é responsável pela eliminação de todas as formas de sofrimento identificadas na convivência social. A eliminação do sofrimento alheio se torna motivo da ação moral de cada um”, comenta Peluso (p. 14).
A verdadeira função do Direito seria disciplinar as pessoas, como ensina Peluso (p. 209): “Nesse sentido a educação e a disciplina social são ingredientes indispensáveis para o funcionamento da sociedade. Pessoas sem educação frequentemente buscam a oportunidade de se aproveitar das recompensas devidas a outros, ou ainda procedem sem levar em consideração os verdadeiros efeitos, em termos de prazer e de dor, de sua conduta pessoal.”
Houve também especial atenção às sanções e punições, já que o prazer e a dor atribuem verdadeiros valores aos atos e também são causas eficientes do comportamento, explica Morrison (p. 227). Paul Smith complementa: “Para Bentham, portanto, a utilidade (prazer ou felicidade) define o benefício. Essa concepção é usada para determinar o que é Direito. Bentham propõe o princípio da utilidade ou da maior felicidade. Esse é o princípio que ‘aprova ou não toda ação’ de acordo com sua tendência de ‘aumentar ou diminuir’ a felicidade. Aplica-se a toda ação, apenas às dos indivíduos, mas também as do governo.”
Comenta Smith (p. 162) que, de acordo com Bentham, os elementos essenciais e a estrutura do utilitarismo seriam a concepção do benefício como prazer ou felicidade (utilidade) e o Direito seria simplesmente algo para aumentar essa felicidade. A ação correta seria aquela que atendesse melhor aos desígnios da utilidade, a maior felicidade ou o prazer para o maior número possível de pessoas. “Fica evidente que, na formulação de Bentham, a interpretação do princípio de utilidade implica a coincidência entre o prazer particular e o bem público. Nesse sentido, a felicidade alheia é desejada porque está associada com a própria felicidade do sujeito moral”, explica Peluso (p. 18). Morrison (p. 229) complementa: “O direito objetiva aumentar a felicidade total da sociedade ao desestimular os atos que possam gerar más consequências. Um ato criminoso ou ilegal representam, por definição, uma prática claramente prejudicial à felicidade do corpo social; somente um ato que, de alguma forma específica, inflija na prática algum tipo de dor – diminuindo, assim, o prazer de um indivíduo ou grupo específico – deve ser objeto da preocupação do Direito.”

As sanções como força vinculatória
Justifica-se, assim, que os direitos de uma minoria sejam sacrificados em nome dos direitos de uma maioria. Porém, isso não é tão simples. É preciso saber calcular o prazer e a dor. As sanções dão força vinculatória a uma regra de conduta ou lei, explica Morrison (p. 227), e são, no total, de quatro tipos: físicas, públicas, morais ou religiosas. Seriam as sanções ameaças de dor. “Na vida pública, o legislador entende que os homens se sentem ligados a certos atos somente quando estes têm uma sanção clara a eles associados, e tal sanção consiste em alguma forma de dor se o tipo de conduta determinado pelo legislador for infringido pelo cidadão. Portanto, a principal preocupação do legislador é decidir que formas de comportamento tenderão a aumentar a felicidade da sociedade, e quais sanções serão mais passíveis de produzir essa maior felicidade. (...) Além disso, Bentham adotou a posição de que, sobretudo na esfera social em que o direito opera, a lei só pode punir aqueles que realmente infligiram sofrimento, qualquer que seja seu motivo, ainda que se admitam algumas exceções”, assevera Morrison (p. 228).
A teoria da punição proposta pelo utilitarismo é simples e mais capaz de atingir seus objetivos. Porém, considerava Bentham que a punição é um mal em si, pois acarreta em sofrimento e dor. Só se utiliza a punição, então, no intuito de punir um mal maior. Deve ela ser útil para que, ao final se tenha mais prazer e felicidade. Desta feita, não se trata de retaliação ou de vingança pura. “A punição não deveria ser infligida (i) quando for infundada; por exemplo, quando ineficaz, no sentido de não ser capaz de impedir um ato prejudicial; (ii) quando for ineficaz, no sentido de não ser capaz de impedir um ato prejudicial; por exemplo, quando uma lei criada depois do ato for retroativa, ou ex post facto, ou quando uma lei já existe mas não foi publicada. A punição também seria ineficaz quando estivessem envolvidos uma criança, um louco ou um bêbado, ainda que Bentham admitisse que nem a infância nem a intoxicação eram bases suficientes para a ‘impunidade absoluta’. A punição também não deve ser infligida (iii) quando for improfícua ou excessivamente onerosa, ‘quando os danos em que resultasse fossem maiores do que aquilo cuja ocorrência impedisse’; (iv) quando for desnecessária, ‘quando o dano puder ser impedido ou interrompido sem ela, isto é, a um menor custo’, sobretudo nos casos ‘que consistem na disseminação de princípios perniciosos em matéria de dever’, uma vez que em tais casos a persuasão é mais eficaz do que a força”, diz Morrison (p. 230).
Leia mais:

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PELUSO, Luis Alberto. Ética e Utilitarismo. Campinas: Alinea, 1998.
SMITH, Paul. Filosofia Moral e Política – liberdade, direitos, igualdade e justiça social. São Paulo: Madras, 2009.